Tuesday, October 19, 2004

Sermão

«Nonne cognoscent omnes, qui operantur iniquitaten, qui devorant plebem mean, ut cibum panis» (Salmo XIII-4)

«Porventura, não conhecem todos, os que devoram o meu povo, como um pedaço de pão?»


É sempre difícil começar um sermão, principalmente quando estamos seguros do que sentimos mas não de como iremos fazer passar a nossa mensagem. Decidi começar por esta simples passagem bíblica utilizada por Padre António Vieira no conhecido mas não absorvido "Sermão de Santo António aos Peixes", brilhante obra barroca em que as interrogações retóricas são constantes, em que se estabelecem paradoxos em torno dos modos de vida de uma época, em que o texto antitético ganha sentido perante a triste realidade que é a "raça humana", texto que por ser uma crítica assente em metáforas não se extingue em si mesmo mas serve de ensinamento para um povo, que passado quatro séculos contínua a ser comido, como o pão que, segundo Padre António Vieira, é o único alimento que se come sempre e continuamente, tal como os miseráveis da nossa nação que continuam a ser comidos.

Neste falado sermão, os peixes são repreendidos por se comerem uns aos outros, mas reparemos que até a maneira como servem de alimento é injusta, já repararam que é sempre o peixe maior que come o mais pequeno? E será que uma baleia se contenta com uma sardinha? Não, um poderoso come sempre muitos peixes pequenos, raia miúda que nasce para ser alimento e morre no estômago do opressor com o sentimento de missão cumprida. E depois de digerida, que dirá ela perante o tribunal divino? Será que Deus terá compaixão com quem teve medo de lutar com a dignidade de Luso, a força de Viriato e a coragem de D. Sebastião? É triste olhar para esta pátria, para este cherne que serve de alimento aos grandes, que se contenta em saciar o Império, que deixa a sua cultura ser absorvida e globalizada.

Que é feito da pátria? Que é feito do Rei? Quantas manhãs de nevoeiro se abaterão sobre as margens do Tejo até voltar D. Sebastião? E onde paira o nobre sapateiro Bandarra, que idealizou o V Império? Quantos "Concílios dos Deuses" serão precisos para que se permita levantar esta nação? Que viu perder as qualidades de Marte e Vénus para viver sobre o efeito de Baco, uma nação embriagada, tonta e perdida que já não se revê em si mesma.

Tal como citei na bíblia, por quanto tempo continuaremos a ignorar quem devora o nosso povo como pão? Não me acusem de radicalismo, ou como se vulgarizou chamar fundamentalismo, não me tomem por céptico, pois acredito no meu povo, VIII séculos de história não se perdem de um dia para o outro, mas convém estar sempre com os olhos bem abertos.

Vivemos em crise, quem ainda não ouviu isto? Mas porque será? Será mesmo por causa do falado défice? Será a conjuntura internacional e o temido terrorismo? "Tantas perguntas, tão poucas respostas..." (escrevia Brechet). Na verdade vivemos numa crise, mas de valores, estamos a perder a nossa identidade e a sermos absorvidos pelo mundo anglo-saxónico. É triste que tudo o que nos rodeie seja capital estrangeiro, é triste que os "Best-Sellers" sejam de J.K. Rowling e não de Saramago, é humilhante que se troque comida saudável por um King Burguer, é arrepiante ver alunos que não conhecem Miguel Torga serem bombardeados com horas e horas de inglês, é chocante sermos obrigados a participar em guerras que não são nossas, tudo porque estamos a ser absorvidos! Valerá a pena escrever este texto, quando sei que me irão tomar como tolo? "Tudo vale a pena se a alma não é pequena" (diria Pessoa).

Falo agora em tom de desabafo, sinto-me revoltado com a falsidade que envolve tudo quanto nos rodeia. Somos ignorados por todo o mundo e continuamos a servir quem nos oprime, continuamos a cultivar uma mentalidade em que o futuro é saber Inglês, estar actualizado sobre o "Dow Jones" e não perder as recentes novelas em torno da família real de Inglaterra.

Mas o que será feito do nosso rei? O que será feito da república? É preciso que exista uma reflexão profunda sobre a identidade nacional, é preciso repensar a pátria e o patriotismo para que nem mais um primeiro-ministro fuja do governo para se acomodar na Europa, para que voltem a haver governos com legitimação democrática, para que o nosso país não fique celebre por o governo não conseguir colocar cinquenta mil professores, para que a nossa pátria não seja falada lá fora por enviar barcos de guerra para vigiar activistas pela interrupção voluntária da gravidez e fundamentalmente para que não voltemos a ser arrastados pelos Estados Unidos e pela Inglaterra para uma guerra injusta, a guerra contra o terrorismo que não passa de um "show" bélico da luta desenfreada pelo petróleo. Um país que honra a sua pátria recusa-se a ver cair tudo que é património público, criando-se uma mentalidade falaciosa de que "tudo que é estado atrapalha".

Repensar a pátria e o patriotismo é termos orgulho no nosso passado e lutarmos por um futuro melhor, onde impere uma igualdade efectiva, onde haja liberdade para os comentadores expressarem as suas opiniões e onde os políticos não participem em "Realities Shows", onde as estrelas sejam os músicos, os poetas, atletas e pensadores e não figuras marginais de aspecto horrendo. Vamos repensar a nossa própria maneira de pensar a pátria.



"Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,

Define com perfil e ser

Este fulgor braço de terra

Que é Portugal a entristecer –

Brilho sem luz e sem arder,

Como o que fogo-fátuo encerra."

(Fernando Pessoa)

João Gomes

Jornal Labor

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