Wednesday, August 18, 2004

Um combate de futuro



Expresso - 14/08/2004

Um combate de futuro
Mário Soares


É SALUTAR, no interior de um partido responsável, que se discutam, em público, as ideias orientadoras do seu activismo e as estratégias a seguir - para a resolução dos graves problemas do país - quando se pretende que os militantes elejam, em consciência, o líder do partido.

É salutar: porque é mobilizador do militantismo; e porque abre o partido à sociedade. O debate - e quanto mais amplo for, melhor - uma vez publicitado, desperta a curiosidade e atrai novos quadros, activistas, simpatizantes e competências.

Sempre que num partido se discutem, seriamente, os problemas e se redefine um «novo rumo» de acção - esse partido dá um salto em frente, fica mais forte, descobre um novo dinamismo. Pelo contrário: o unanimismo, o «politicamente correcto» e o silêncio, são factores de atrofia partidária, de predomínio dos aparelhos e, finalmente, de fraqueza.
Por isso, considero feliz que se tenha aberto uma janela de discussão política séria no PS - e nos meios políticos e mediáticos interessados - a propósito da eleição do secretário-geral que agora compete, como se sabe, aos militantes de base, por voto directo e secreto. Qualquer que seja o resultado da eleição, o PS - e os seus eleitores - sairão mais esclarecidos e reforçados.

Um tal debate é tanto mais de louvar, quanto desde há uns anos - não só em Portugal, de resto - os partidos da Esquerda e da Direita, têm vindo, gradualmente, a perder militantismo e a substituir a discussão das ideias pela dos interesses, das «carreiras», da imagem e do «fulanismo», a todos os níveis partidários. Os partidos têm vindo a deixar de congregar os seus militantes, em função das ideologias e dos projectos político-sociais-económico-culturais que defendem para a transformação dos respectivos países - e o bem-estar geral dos cidadãos - para se tornarem uma espécie particular de empresas clubísticas, com os seus adeptos, os seus rituais, o seu «marketing», os seus «slogans» e os seus funcionários. Tornam-se, assim, demasiado parecidos, criando entre si, da Direita à Esquerda, um espaço pantanoso que tem a ver com interesses egoístas que lhes são comuns ou, pelo menos, criam cumplicidades. Suscitando, do mesmo passo, um certo desinteresse pelos partidos, pela política e pelos políticos...

A vaga do neoliberalismo

Ora, o pensamento e as ideias precedem - ou devem preceder - sempre a acção. Por isso, Antero de Quental (que aliás foi, com José Fontana, um dos fundadores do Partido Socialista, em 1875) perguntava, quando do encerramento forçado das Conferências do Casino, numa célebre carta dirigida ao duque d’Ávila e Bolama, então presidente do Governo: «Mas, Ilustríssimo Senhor, será possível viver sem ideias?» Pergunta pertinente, que continua a interpelar-nos.

É certo que o colapso do comunismo, a globalização das economias, bem como as novas tecnologias da informação, deram origem, em condições históricas determinadas, à vaga avassaladora do neoliberalismo. Mas não foi o fim da História, como chegou a profetizar Francis Fukiama.

Essa vaga, além de outras consequências, mais ou menos negativas, provocou, em muitos partidos europeus da Internacional Socialista, um fenómeno mimético a que Donald Sassoon chamou «o neo-revisionismo» - ou seja: o endeusamento do mercado, a desistência da crítica do capitalismo, sobretudo, nesta fase perversa, financeiro-especulativa e a adopção da ideia de que o socialismo representa tão-só a coexistência do capitalismo com a justiça social. A transformação da sociedade, para melhor, e a igualdade de oportunidades, para todos, foram temáticas que desapareceram do ideário socialista...

Nos últimos lustros do século passado - e nestes primeiros anos do séc. XXI - o socialismo europeu perdeu muito do seu poder de atracção e da sua acutilância. Em 15 países da União Europeia, estiveram no poder 11 partidos socialistas e nem por isso o socialismo avançou. Foi uma ocasião perdida! Adoptando ou não a chamada 3ª via, de Tony Blair, hoje em total descrédito, o socialismo europeu partilhou a tese da competitividade obtida à custa da flexibilidade no trabalho (leia-se, desemprego), desistiu completamente da planificação económica e do pleno emprego, assistiu, impávido, ao desmantelamento do Estado, promoveu a privatização de sectores económicos estratégicos fundamentais e a sistemática delapidação do património público, aceitou que se desprestigiasse a noção do serviço público e recuou na defesa do modelo social europeu, com grande prejuízo para a população mais carecida. Os direitos e garantias dos trabalhadores, consagrados por mais de um século de lutas sociais, também começaram a ser fortemente cerceados.

Mas a história, às vezes, escreve direito por linhas tortas. Os resultados da vaga neoliberal estão hoje à vista. São devastadores para o mundo. Além de guerras unilaterais - como a do Iraque - provocadas por grandes interesses inconfessáveis (o petróleo e o gás natural, hoje; amanhã, a água potável), o aumento da pobreza no mundo, o fosso cada vez mais intolerável entre pobres e ricos, a desordem ecológica, de gravíssimas consequências, a proliferação de pandemias anteriormente erradicadas - como a tuberculose - ou a incapacidade de deter a progressão da sida, a criminalidade internacional organizada e impune - o certo é que o capitalismo, com a vaga neoliberal, entrou numa deriva extremamente perigosa, sem regras nem princípios éticos, dando lugar a uma enorme crise de civilização.

John Maynard Keynes (1883-1946), inspirador das políticas intervencionistas que deram origem, na Europa Ocidental, a trinta anos «magníficos» de progresso e contínuo bem-estar social, voltou a ser lembrado e reconhecido. Alguns economistas - e dos mais reputados - falam mesmo de neokeynesianismo como um horizonte provável do futuro.

A reacção ao neoliberalismo - e às suas injustiças - começou a fazer-se sentir. O fenómeno novo da cidadania global - expresso pelos altero-mundialistas em grandes manifestações, que ocorrem por toda a parte - veio proclamar que «um outro mundo é possível», mais justo, mais solidário e melhor. Uma nova utopia? Talvez. E porque não? Há que reconhecer, que as utopias - apesar dos crimes praticados em seu nome e dos impasses trágicos a que, algumas vezes, conduziram, como o comunismo - fizeram avançar o mundo. Às vezes, indirectamente, é certo. Mas como dizia António Gedeão: «é o sonho que comanda a vida».

Também não deixa de ser uma ironia da História, bastante paradoxal - e motivo de reflexão - que quinze anos após o colapso do comunismo, seja uma potência dita comunista, a China, apesar das suas terríveis contradições internas, que está, no plano económico, a crescer espectacularmente e em condições de vir a pôr de joelhos a hiperpotência económica mundial, os Estados Unidos, não obstante ainda, para muitos países subdesenvolvidos, globalização e americanização serem uma e a mesma coisa...

O mundo é muito vasto, imprevisível, complexo. É o que o torna, de resto, apaixonante. Não deve ser visto unilateralmente. Além da China, a Índia, a Rússia, a África do Sul, o Mundo Árabe, o Brasil e a Ibero-América, têm, nos próximos anos, uma palavra importante a dizer, como, obviamente, no mundo desenvolvido, o Japão e a União Europeia (infelizmente, hoje, tão omissa).

A economia não é tudo

O impasse da Organização Mundial de Comércio, em Cancun, não foi inútil. Em Genebra, há semanas, deu-se um pequeno passo, porém com algum significado. As pessoas começam a compreender que a mão invisível do mercado não faz milagres e, entregue a si própria, gera tremendas injustiças. Tem, por isso, de obedecer a regras éticas e políticas, sem o que caminha para um manifesto desastre. Por outro lado, a economia - sem mais - não é tudo. Longe disso. A vontade das populações - as suas legítimas reivindicações - devem ser ouvidas, a menos que queiramos deixar de viver em «sociedades abertas», com ensinava Karl Popper. E em permanente - e cada vez mais grave - conflitualidade.

Portugal, neste contexto, passou, nos últimos anos, de «um bom aluno europeu» - com excelentes perspectivas - para um país mergulhado numa crise complexa e de que se não vê saída fácil. Tornou-se um país opaco, inseguro, triste. Nos últimos dois anos, em que a Coligação de Direita esteve no poder, a crise financeira, herdada do segundo guterrismo (depois da saída de Sousa Franco), transformou-se numa crise económica, social, política, cultural, até psicológica. Uma crise geral de confiança. A conflitualidade alastrou, na proporção do aumento do desemprego e na medida em que a Ciência e a Inovação não dispõem de verbas necessárias e os horizontes se fecharam, sobretudo para a juventude. Trata-se, porventura, da pior crise que Portugal viveu desde o 25 de Abril.

A circunstância do PS, como principal partido da Oposição, abrir uma ampla discussão quanto ao seu posicionamento estratégico - e às suas eventuais alianças à Esquerda - de modo a estabelecer uma alternativa de poder à Coligação de Direita, que seja credível e sustentada, é em si mesmo, um sinal positivo e encorajante. Significa que, num mundo em que tudo está a mudar, aceleradamente, o PS - ou pelo menos algum PS - está a compreender os sinais do tempo novo que aí vem, necessariamente, e a lutar por uma nova arrancada para Portugal, de paz, de progresso, de justiça social, de bem-estar e de solidariedade.

Rejeitando as areias movediças do Centrão e reposicionando-se na Esquerda dialogante e plural, que represente o futuro.

É, por isso, que as candidaturas a secretário-geral do PS, que se situam à Esquerda, quaisquer que sejam os resultados que obtenham, representam um combate de futuro, que importa continuar. O único, de resto, que vale a pena travar.

Expresso - 14/08/2004




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