Sunday, December 18, 2005

O Escafandro e a Borboleta.

Por experiência pessoal, a privação de liberdade que mais me revolta é a que se prende com a gestão da vida. Tenho a Constituição da República Portuguesa como algo sagrado, a par da Bíblia, mas não obstante isso, o preceito da inviolabilidade da vida, exposto naqueles moldes não acolhe a minha aprovação. Não quer isto dizer, que concorde ou tome como guia toda e cada palavra que nela reside, toda e qualquer parte daquele todo. Na questão do Direito à vida revolta-me que quem quer que seja tente através de um preceito ainda que Constitucional, limitar quem no pleno uso da razão possa optar por pôr termo à vida.

Como é do conhecimento de todos quantos privam mais de perto comigo (em especial o que os fazem há mais tempo), fruto de um acidente passei largas semanas no Hospital, quer na Unidade de Cuidados Intensivos, quer depois na parte de internamento, quer ainda em ginásios de fisioterapia. Nestes locais privei de perto com casos dramáticos, casos de pessoas cognitivamente no seu esplendor fechadas a sete chaves num corpo deficitário de capacidade de movimentos. Acidentes vasculares cerebrais, acidentes de automóvel, lesões vasculares ou lesões físicas que incapacitam corpos e retiram grande parte do sentido que a vida tem, atirando com os seus donos para uma espera lenta pelo dia da morte, e para uma inglória luta contra um corpo desprovido de hipótese de recuperação.

Uma vez nesta situação, a vítima do infortúnio tem duas hipóteses de encarar a vida. Uma positiva acenando afirmativamente para um futuro pouco risonho, e outra negativa desprovida de vontade e esperança de lutar contra algo demasiado forte para ser vencido. Da mesma forma que louvo a atitude dos primeiros, sou o primeiro a defender os segundos, considero discriminatório que se impeça um médico de corresponder ao desejo do doente de por termo ao à vida, tanto mais que na maioria dos casos estamos perante pessoas que nem capacidade física têm para o fazer, visto que se pudessem, certamente o fariam pelas suas mãos sem precisar de assistência ou de alguém para decidir por eles. Estamos nestes casos a falar de um suicídio assistido, de uma morte assistida, do consumar de uma decisão que ninguém deve contrariar…

Se o Direito à vida antes do nascimento pode ser discutido, neste caso concreto não há discussão possível, estamos a falar da gestão da duração de uma vida por parte de alguém na plena posse das suas capacidades... A decisão só pode caber ao próprio, a mais ninguém, é o próprio que sofre, que sente, e o único que pode decidir até quando quer lutar numa batalha dolorosamente perdida à partida.

Tive oportunidade de ler recentemente o ‘Escafandro e a Borboleta’. Neste livro Jean-Dominique Bauby, antigo redactor-chefe da revista Elle, transmite a sua experiência num corpo atingido pelo «locked-in syndrom», doença rara que o deixou lúcido intelectualmente, mas paralisado por completo, só podendo respirar o comer por meios artificiais e mover o olho esquerdo.Foi este olho que usou para escrever o seu livro, piscando-o à medida que a assistente percorria o alfabeto para letra a letra obter palavras que fariam aquele livro. Neste caso concreto, Jean-Dominique quis encarar a vida com a surpresa que ela lhe tinha reservado. Admiro-o muito por isso. Pessoalmente não sei como faria, mas reconheço e defendo com toda a força o direito de quem assim não queira fazer…

2 comments:

Filipe de Arede Nunes said...

Pôr o mesmo post em dois bloges não conta Sr. Maquiavel!!!

André Couto said...

O conteúdo do post era adequado aos dois! Onde está previsto o impedimento? ;)